sexta-feira, 20 de março de 2015

A reconstrução do eu

A questão não é se Deus me ama, mas se eu amo a Deus. Não quero apelar pro discurso religioso por que esse tipo de discurso é um pé no saco e não traduz a inquietação humana. Também não pretendo desassociar fé da razão ou desmerecer a construção religiosa que exista em mim, pois a meu ver (e eu não tenho como provar isso, senão especular), todo ser humano é religioso e lida com suas crises de maneira religiosa, seja para negar/afirmar a existência de um Deus absoluto ou apelar para espiritualismos necromantes, etc.

Contudo, como estava dizendo, a questão é se eu amo a Deus. A conclusão a que chego é que em boa parte da vida nós odiamos a Deus, ou melhor, criamos um deus que nos satisfaça enquanto o próprio Deus apenas assiste a tudo em Sua grande compaixão, amor e misericórdia. Somos livres, não é mesmo? Se existe um céu ou inferno, dos dois não merecemos o primeiro, mas com toda a certeza o segundo. E, se por acaso, vamos para o primeiro e não para o segundo não é por nenhum esforço humano ou de ações benevolentes próprias, mas de completa graça compartilhada a trapos imundos também conhecidos como “ser humano”.

Eu chego à conclusão de que não amo a Deus quando me dou conta do que os meus olhos apreciam, de como meus ouvidos dão atenção a determinados sons, ao que os meus membros naturalmente se inclinam a fazer mesmo contra a minha vontade. Eu percebo que não amo a Deus quando mesmo tentando ter uma vida “correta”, continuo fazendo o errado. Ah!, definitivamente eu não amo a Deus. Não preciso fazer novenas, nem longas preces e consagrações supra espiritualistas para chegar a este fim.

Agostinho, o bispo de Hipona, já dizia que o livre-arbítrio do ser humano consiste em fazer o que é de sua natural inclinação, uma inclinação deturpada e maluca (acréscimo meu). E, se este ser humano faz algo de bom não é por mérito, moral ou ética própria, mas por completa compaixão, amor e misericórdia de Deus. O teólogo Ariovaldo Ramos vai traduzir isso mais ou menos como se a eternidade Dele ainda morasse em nós de alguma maneira, e essa eternidade é o que ainda nos sustenta e impede a completa extinção humana.

Eu percebo que não amo a Deus quando por mais bens e conquistas que eu venha a ter, nunca estarei satisfeito. A arrogância de sempre querer mais, de subverter e controlar são como uma praga. Uma erva daninha que nem o veneno mais forte consegue matar. O escritor C. S. Lewis já dizia em seu livro “Cristianismo Puro e Simples” que temos de morrer antes de morrer. Compreendendo bem a minha insatisfação com o meu eu, com a minha condição deplorável e intragável, faz sentido afirmar que eu preciso morrer cada vez mais antes de chegar o meu fim pleno. O fim do corpo e da alma. Faz sentido me observar e ter a humildade de dizer “não sou bom nem nada do que tem em mim é bom, nem mesmo as minhas intenções são boas, pois elas sempre serão voltadas para o meu eu, independente de beneficiar o próximo ou não”.

Sim, eu luto para amar a Deus todos os dias. Luto contra mim mesmo e esta imprestável condição humana que diante da majestade de um Ser todo poderoso, me confronta e impulsiona a ser menos de mim e mais Dele. Não, isso não é a negação do eu apregoada pelos gnósticos do primeiro século, mas o reconhecimento do vírus que é o orgulho humano e de como ele é nocivo e pernicioso em toda a construção social, emocional e psicológica.

Sim, eu luto para amar a Deus todos os dias. Luto, pois percebo que do que depender de mim e das minhas próprias motivações, inclinações, desejos e condições, deturparei e destruirei tudo ao meu redor inclusive a mim mesmo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei do texto. Em outro momento deixarei meu comentário.